quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Melancolia


Melancolia (Melancholia, Alemanha/Dinamarca/França/Suécia, 2011) Direção de Lars Von Trier. Com Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Kiefer Sutherland, Alexander Skarsgård, Charlotte Rampling, John Hurt, Stellan Skarsgård, Brady Corbet, Udo Kier, Cameron Spurr.


Renato Cordeiro

A fragilidade das convenções sociais e a inescapável solidão existencial estão no cerne de Melancolia, obra na qual o diretor Lars Von Trier utiliza dois atos distintos para dissecar as irmãs Justine e Claire, interpretadas por Kirsten Dunst e Charlotte Gainsbourg. A primeira é a expressão do sentimento que dá nome ao filme, enquanto a segunda busca manter nos ritos da vida moderna o refúgio para o mundo feio e sem sentido tantas vezes denunciado pelo cineasta.

Na primeira parte do longametragem, o espectador acompanha a festa de casamento de Justine e Michael, que ocorre na mansão do cunhado, uma luxuosa propriedade com ar medieval. Tudo vai bem até que discursos nada tradicionais fazem cair por terra as aparências que recaem sobre a família da noiva. Claire sabe o que vem pela frente e exige que a irmã não deixe transparecer a tristeza que aos poucos vai tomando conta. A ditadura da felicidade se impõe sobre a garota, que terá de permaner sorrindo, dançando e desfrutando da companhia das pessoas ao seu redor.
O primeiro ato, mais rico em interações, é levemente superior, até pela qualidade do elenco de apoio.

O segmento seguinte leva o nome da irmã da noiva. A esta altura, ganha destaque a colisão entre a Terra e o planeta chamado Melancolia, um recurso para que as duas protagonistas, submetidas à mesma expectativa, mostrem a diversidade das reações frente a um fim iminente e compartilhado. Justine, talvez por não ter nada a perder, não se desespera frente à catástrofe que se avizinha. Claire, tão acostumada a estar no controle sobre tudo, entra em crise e tenta encontrar algum conforto em hábitos rotineiros e outros rituais que ainda pode criar.

Dunst, na primeira parceria com o diretor, e Gainsbourg, repetindo a colaboração iniciada em Anticristo, potencializam ainda mais o excelente trabalho do cineasta Lars Von Trier, cujas câmeras intravenosas fazem o espectador experimentar a tristeza e exaustão de Justine, além do pavor e resignação de Claire. A crítica chegou a apontar que o dinamarquês faz em Melancolia seu trabalho mais otimista. No fim das contas, ainda que seja menos perturbador que trabalhos como Dogville e Dançando No Escuro, o longametragem mantém a postura de que a verdade libertará. Von Trier se representa em Justine para dizer que estamos sós e sós morreremos. O que não impede que a solidão seja compartilhada com aquela que habita em outras pessoas.

Nota: 7,0 (de dez)



Bee

(Este texto fala muito sobre a história do filme, sendo desaconselhado para os que não querem ler nada sobre ela).

Melancolia foi um dos melhores filmes que assisti nos últimos meses. É fácil dizer isso considerando-se que eu quase não tenho visto filme algum, e que entre estes raros, está o bobo Thor. Mas tenho certeza de que mesmo que tivesse assistido muitas coisas boas, este novo filme de Lars Von Trier provavelmente continuaria sendo um dos melhores filmes que assisti nos últimos meses.

Aliás, Anticristo, seu filme anterior, também está incluído no pacote de melhores produções assistidas recentemente – me atrasei um pouco. Talvez por isso as comparações entre eles estivessem bem vivas em minha mente durante a projeção. Melancolia está no rastro de seu predecessor como uma obra gêmea em muitos aspectos: o formato em prelúdio e atos, sendo o prelúdio no primeiro um prólogo da história a ser contada, e o segundo uma colagem simbólica dos principais aspectos a serem trabalhados posteriormente. Em ambos são as mulheres que vivenciam dois dos aspectos mais sombrios da natureza humana, de forma polarizada: sua ausência total e a intensidade completa, contida ou não.

Nas duas obras são elas quem sofrem mais fortemente, enlouquecem, ardem, saem de controle. Isso me deu até a sensação de uma certa misoginia da parte de Lars, que foi esquecida porém com o desenrolar da história de Melancolia. E há o mergulho na alma humana, em suas rupturas, em seus desvarios. E nas duas a depressão é um dos focos principais.

De uma forma geral, a estética do filme é implacável, como nos trabalhos anteriores de Lars, misturando uma beleza fria e singela com imagens perturbadoras, sempre se utilizando muito do jogo entre luz e sombras, do simbólico, do subtexto visual. A trilha sonora, que me pareceu perfeita em Anticristo, retorna um pouco exagerada, não no repertório, mas no volume. Fiquei achando em algumas passagens que o som do cinema estava com defeito e desregulado, mas parece que isso foi proposital, talvez para adicionar um desconforto a mais em quem estava com os olhos na tela.

A melancolia é tratada no filme em dois atos, inicialmente em estrito senso, e no segundo de forma metafórica. No primeiro ato, acompanhamos o casamento de uma das protagonistas, Justine, uma moça linda, loura e radiante como um raio de sol, inteligente, com uma carreira em ascenção, dinheiro e um noivo apaixonado. Ela tinha tudo o que uma pessoa precisava para ser feliz, certo? Errado. Mas Lars foi inteligente em demonstrar que Justine não é apenas deprimida por uma patologia psiquiátrica – melancólica por uma depressão major, ou sem motivo aparente. Sua depressão parece ser reativa ao que ela enxerga por trás de seu núcleo social – uma família disfuncional, um chefe sem escrúpulos, um noivo comum – e que vai aos poucos corroendo sua vontade de viver. Talvez seja preciso ter vivenciado os sentimentos de Justine – como o próprio Von Trier – para entender o quão real é o retrato que ele nos apresenta. Neste aspecto o filme me mobilizou imensamente.

Já no segundo ato, Melancholia, o planeta escondido atrás do sol, e que em sua trajetória prevista pelos cientistas pode ou não se chocar com a Terra, é uma metáfora utilizada de várias formas para nos mostrar o quão frágeis nós somos e o que é que importa no final das contas quando nada mais tem importância. Ele é um fator de desestabilização do mundo de Claire, a irmã de Justine, que é seu extremo em vários aspectos, inclusive fisicamente – esse artifício me impressionou muito, a construção da polaridade entre as personagens. Se Justine é um beija-flor vívido, brilhante e exuberante por fora, Claire é um pequeno corvo, miúdo, moreno, com traços simplórios. Não se poderia adivinhar um parentesco entre as duas irmãs. Claire é o oposto emocional de Justine: organizada, controladora, porém extremamente ansiosa. Se a depressão é a ausência de afeto, vontade e sentimentos, a ansiedade é de certa forma o polo oposto – a exacerbação dos mesmos a um ponto disfuncional.

Melancolia é um filme que impressiona em muitos aspectos, desde a construção do roteiro até a condução do elenco, composto de um quebra-cabeças de atores muito ou nada conhecidos, e de todos eles Lars extrai o melhor: um personagem crível e mergulhado em sua persona. Mas o ponto alto é a construção de Justine, que caminha velozmente a um ponto de quase catatonia, para depois ressurgir com uma lucidez assombrosa, perante a luz do planeta azul que está vindo em nossa direção trazendo a possibilidade do fim. Melancolia nos envolve, nos hipnotiza e nos devora, até nos devolver ao acender das luzes um pouco ou muito modificados. Não é à toa que a arte talvez possa nos salvar, no final das contas.

Para assistir: 1 - de peito aberto para um Von Trier 2 - Num cinema sem mangue 3 - De preferência sem saber nada do filme.








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